O BORUN KUÊK

 

abi  assessoria extraordinária do bicentenário                                                                                  Prefeitura Municipal de Jequitinhonha

 

O botokudo Kuêk em Neuwied

 

Em maio de 1815 o Príncipe Max de Wied-Neuwied chega ao Rio de Janeiro, vindo de Londres. Aqui começa seu trabalho de naturalista e etnógrafo, que ele prosseguiu incansavelmente, embrenhado nas matas, até 1817.

Ele se tornou porta-voz  para os círculos esclarecidos da Europa das nações indígenas habitantes da faixa de Mata Atlântica que compreendia da foz do Rio Grande de Belmonte (hoje rio Jequitinhonha) até o rio Doce e o rio Mucuri. Nesse tempo, ele aprendeu intensamente sobre as suas línguas, usos e costumes, ligando-se especialmente aos botocudos, que descreveu, em seu relato da viagem ao Brasil, de maneira altamente positiva.

Exímio desenhista, Max também os retratou de todas as maneiras: na caça, em suas ocas, dormindo, guerreando, escalando  em árvores. Ligou-se de amizade com muitos, especialmente com o jovem botocudo Kuêk, que mais tarde o seguiria para a Europa,

Os registros contam apenas que Kuêk teria sido vendido à expedição de Max. De onde teria vindo, se teria sido recentemente capturado ou se teria já nascido em cativeiro, não se sabe. Max também não esclarece detalhes sobre as origens de Kuêk, dizendo apenas que o jovem lhe transmitira importantes informações sobre os usos e costumes, língua e hábitos vestimentários dos botocudos.

Ele sempre recorre a Kuêk para confirmar suas conclusões etnográficas. Kuêk tornou-se responsável pelo fornecimento das peças da fauna necessárias às investigações científicas de Max, caçando-as com  arco e flecha, essa embebida em substância narcótica. Em Neuwied, Alemanha, no palácio do príncipe, Kuêk  assistiria Max na elaboração de um Dicionário da Língua Botocuda.

 

“Kuêk, A Mais Valiosa de Todas as Raridades”

Em 10 de maio de 1817 Max regressa à Europa. O secretário de Max fica para organizar o transporte da coleção de fauna e flora do príncipe, e viaja em 12 de fevereiro de 1818, levando também Kuêk, passando por Amsterdã e chegando a Neuwied.

Lá, a curiosidade  pela criatura exótica é imensa. Sábios, políticos e amigos do príncipe acorrem de toda a Europa para conhecer o jovem índio, citada por alguém da época como “a mais valiosa de todas as raridades trazidas pelo Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied da sua viagem ao Brasil”.

Um jornal alemão assim descreve Kuêk: “Ele é de pequena estatura, mas de forte compleição; ombro, costas e peito bem acolchoados; pernas e braços muito magros em comparação; a cor é uma mistura de marrom e cinzento, podendo ser amarelo-cinzento. Sua testa é alongada para o alto da cabeça; suas sobrancelhas têm pouco cabelo; seus olhos são pretos; o nariz é curto, achatado e grosso; as maçãs do rosto bem altas; boca grande, lábios grossos, barba e bigode  praticamente inexistentes (os cabelos no corpo devem ser também muito ralos), enquanto os cabelos da cabeça são espessos, escuros como corvo e ásperos com o de um cavalo”.

Dada sua pequena estatura, alguns calculam sua idade em  13 anos, mas outros cientistas em 18 anos. Como usara desde cedo os atributos dos botocudos, pedaços de madeira nas orelhas e lábio inferior, e desde antes de sua chegada na Europa os tirara, ele é descrito como tendo as orelhas caídas.

Uma Identidade Alemã: Joachim Kuêk

Na corte do Príncipe Max foi-lhe dado o nome de Joaquim Kuêk e o trabalho de criado de quarto do príncipe. O mesmo jornal descreve a natureza de Kuêk como “agradável, embora ele não se deixe pressionar nem receber ordens. Com jeito, porém, se consegue levá-lo.” Graças à amizade e respeito com que era tratado por Max, Kuêk  ligou-se fortemente a esse. Algumas vezes queriam ouvir canções de sua tribo: ele então colocava a mão direita sobre a cabeça, a esquerda sobre a orelha e cantava, mas só  a pedido de Max.

Por que teria Max levado o jovem botocudo para a Alemanha? Ele mesmo havia escrito: “O amor por uma vida livre na floresta os marcam desde cedo e dura toda a sua vida. Quando eles são separados da selva, sofrem de uma profunda nostalgia e fogem, quando não são devolvidos a ela”. Maximiliano esclarece também sobre os hábitos dos europeus no Brasil: “Eles vêem todo homem escuro e nu como um bicho, sobre o qual eles têm direito de posse, e se perguntam mesmo se esses bichos eventualmente poderiam ter um raciocínio parecido ao do homem europeu”.

O povo de Neuwied certamente via Kuêk como uma curiosidade. A parte do Palácio onde ele habitava estava sempre cheia de visitantes e que entravam pelo seu quarto adentro. Todos esperavam que ele fizesse demonstrações de arco e flecha. Ele dava às crianças lições de atirar, e ganhava assim um dinheiro (no serviço de Maximiliano, ele tinha direito a casa e comida), com que ele começou a comprar bebidas alcoólicas.

E para Maximiliano, o que significava Kuêk? Mais um objeto de coleção, ou uma pessoa a quem ele se ligara por laços de afeição depois de tantas aventuras juntos, a quem ele queria dar uma nova existência em Neuwied?

Maximiliano era sem dúvida a pessoa referência para Kuêk. Maximiliano porém estava sempre em viagem. Kuêk se acabrunhava na solidão. Um jornal de Neuwied o descreve assim:“Ele se sentava ao lado da lareira, se esquentando, sozinho, quieto, cabisbaixo, sem ligar para as outras pessoas em torno, voltado para dentro de si mesmo. Quem o contemplasse nessa quietude, na noite tranqüila, poderia tomá-lo por um filósofo imerso em profunda meditação.”

Solitário, deprimido, sofrendo com o clima, Kuêk começa a afogar seus sentimentos no alcool. De 1832/34, Max está ausente de todo, numa expedição à América do Norte, e aí os sintomas de Kuêk, longe da guarda e da afeição do príncipe, se agravam.

No dia 1º de julho de 1834 o jornal de Neuwied anuncia : “Morreu Joaquim Kuêk, de aproximadamente 34 anos, originário da nação dos botocudos, no Brasil, criado de Sua Alteza o Príncipe Max de Wied.” O obituário da igreja católica de Neuwied anuncia que Kuêk faleceu às 9 hs do dia 1º de julho, de uma inflamação do fígado e que foi enterrado como católico em Neuwied, no chamado “Cemitério Velho, comum aos católicos e protestantes”. Através das múltiplas guerras, esse cemitério não existe mais.

Mais tarde, seu crânio foi transferido para o Museu de Anatomia da Universidade de Bonn, onde se encontrava em exposição até o mês de janeiro de 2011, quando a cidade de Jequitinhonha reivindicou sua devolução à tribo Krenak, oriunda do mesmo tronco borun de Kuêk,  a entrega se fazendo em ato solene no dia 15 de maio desse ano.

Finalmente Kuêk volta à sua terra.

 

Fontes: Rostworowsky, Christina, tese USP “Viagem do Príncipe Maximiliano ao Brasil – 1815/1817”;

Willscheid, Bernd, “Der Botokuden-Indianer Quäck in Neuwied”, in Heimatbuch Landkreis Neuwied 2008, tradução de Solange Pereira.